Introdução
A apropriação do sistema alfabético é um desafio que se apresenta ao estudante no início de seu processo de escolarização, independentemente de suas particularidades, seja uma criança típica ou neurotípica. Se é desafio para o aluno enquanto aprendente também o é para o professor que tem a responsabilidade de conduzi-lo, orientá-lo, acompanhá-lo em sua trajetória de escolarização.
Nesta direção a atuação docente no Atendimento Educacional Especializado (AEE) é sinalada por muitos questionamentos: qual o melhor caminho didático pedagógico a percorrer? Como elaborar o Plano Educacional Individualizado (PDI) de modo a potencializar o desenvolvimento e a aprendizagem de cada criança? Como acolher cada estudante em sua integralidade? Existe um método mais eficaz no processo de alfabetização de crianças neurotípicas (sintético, analítico, eclético)? Como intervir pedagogicamente de modo convergente com o processo de desenvolvimento cognitivo do aprendente? Qual a melhor forma de envolver a família na vida escolar? Como articular todos os sujeitos implicados no processo de formação dos estudantes do AEE? Estas são algumas das indagações recorrentes de um professor no exercício da práxis pedagógica, que envolve o fazer e o pensar sua ação.
Os questionamentos acima expostos foram agudizados a partir do encontro, na Sala de Recursos Multifuncional (SRM), com EO, 7 anos, diagnóstico de TEA, deficiência intelectual leve, problemas de fala (distorção de fonemas) e atraso no processo de alfabetização. Em virtude disto, neste relato compartilho parte da ação pedagógica realizada com EO com o objetivo de auxiliá-la em seu processo de aquisição da competência leitora, a partir da utilização do método IntraAct.
EO estava matriculada na turma do 2º Ano do Ensino Fundamental (turma única) da Escola Dom Bosco, uma sólida instituição estadual, com 33 anos, que atende do 1º ano do Ensino Fundamental ao 3º Ano do Ensino Médio, no município de Alta Floresta, Mato Grosso. Em 2022 atendeu aproximadamente 400 estudantes e tem em seu histórico a marca do acolhimento e competência no atendimento a alunos especiais.
De acordo com o projeto da Escola a primeira ação pedagógica realizada na SRM é o diálogo com a família, de modo a aproximar da realidade concreta do estudante e estabelecer uma relação de confiança mútua.
Desta forma, no primeiro contato com os responsáveis por EO obtivemos a manifestação paterna do grande desejo de que sua filha aprendesse a ler, por este ser um instrumento de autonomia para resolver “as coisas da vida”. Por sua vez, EO disse: “quero aprender ler para ler os livros do meu pai, ele tem um monte lá em casa”.
Pronto, aí estava o desafio principal do PDI de EO, construir com todos os adultos implicados em sua trajetória de escolarização (família, professora regente, fonoaudióloga) o seu itinerário de aprendente, de modo a auxiliar a professora regente com intervenções precisas e favoráveis para que EO alcançasse a competência leitora e progredisse em seu processo de alfabetização. Com a ciência de que eu era tão somente a professora da SRM.
Desenvolvimento
Desta maneira, por conhecer a experiência exitosa da Professora Irene Duarte que no período pandêmico, 2021, lançou mão do método IntraAct para alfabetizar quarenta crianças, dentre as quais duas especiais, resolvi verificar a fundamentação de tal método e a possibilidade de sua aplicabilidade com EO.
O IntraAct é um método fônico para ensinar a ler, foi estruturado de maneira simples e de fácil compreensão. Foi criado por professores e terapeutas para atender às crianças que apresentassem dificuldade no processo de apropriação da leitura e da escrita.
Assim sendo, a leitura do material de apoio ao professor do método IntraAct mostra que as autoras buscaram respostas para a questão: como a criança aprende? Quais as evidências dadas pela ciência nas últimas décadas no que se refere à alfabetização? E, a partir dos conhecimentos ofertados pela Neurociência cognitiva é que o método foi estruturado. (STREIT, 2022)
De posse dos conhecimentos apresentados no parágrafo anterior, buscando as alianças necessárias, dialoguei com a professora de EO no turno regular e juntas iniciamos o processo de aplicação do método. Tratou-se de um belo percurso em que a família de EO desempenhou singular papel.
A avaliação diagnóstica evidenciou que a estudante identificava o nome de algumas poucas letras, porém sem conhecer os sons, apresentava pouca acuidade auditiva na definição dos sons ouvidos. Desta forma se apresentou a necessidade de trabalhar as habilidades precursoras da alfabetização: Habilidade de compreensão, Vocabulário, Conhecimento das letras, Habilidade de consciência fonológica.
Dois desafios se anunciaram: cativar, encantar EO, fazê-la crer que poderia ler, que era possível e ter o compromisso da família em auxiliar em casa no processo de leitura de maneira contínua e disciplinada, dia a dia, todos os dias. A família aceitou o desafio.
Mas quem é EO? É uma estudante curiosa, ativa, sensível (cheiros e ruídos não lhe passam despercebidos), encantada com o colorido (gosta de usar várias cores para colorir um único objeto), perguntadeira, amorosa e cheia de saberes (cada dia apresenta novas questões instigadoras), contadeira de causos e dotada de boa memória para relatos de acontecimentos, sabe expressar o seu querer.
Nossos primeiros encontros foram marcados pelo cuidadoso caminho da conquista da confiança, do querer compreender os interesses, os limites, os conhecimentos já consolidados, a rotina familiar, ou seja, da busca por saber mais sobre EO em sua integralidade (cognitiva, motora, emocional). Logo percebi que a qualquer indício de contrariedade seus olhos ficavam mareados e as lágrimas fluíam sem barreiras. Tinha insegurança e medo, medo de bronca, medo de errar, e repetia com frequência que não sabia ler.
Neste sentido o método IntraAct é muito assertivo por sua organização gradativa.
Apliquei o IntraAct, seguindo as orientações do livro do professor e as orientações recebidas na formação ofertada pelo departamento pedagógico da Secretaria Municipal de Educação (SME) de Alta Floresta.
Como não dispunha de uma apostila física para disponibilizar para a estudante, preparei um caderno seguindo a apostila estruturada, cuja cópia online foi disponibilizada pela SME.
Na rotina de atendimento de EO consta a participação na SRM três horas por semana, respeitando sua agenda de natação e atendimento fonoaudiológico.
No início da aplicação do método, nos dias em que não tinha atendimento na SRM a estudante era retirada da sala regular por quinze minutos, aproximadamente, para realizar a leitura. Foi a maneira de garantir a aplicabilidade do método todos os dias, no turno escolar, considerando que a articulação da rede municipal com a rede estadual acerca da utilização do método IntraAct ocorreu posteriormente.
A rito diário foi ensinar a EO o som das letras estudadas, sua junção formando sílabas e posteriormente palavras, esta rotina sempre foi seguida de jogos, cantigas e outras atividades prazerosas. Conforme a estudante automatizava a leitura das palavras constituídas pelas letras apresentadas, avançava nas lições.
Importante salientar o componente afetivo sempre presente, os acertos sempre acompanhados de reforçadores positivos e os erros corrigidos de forma clara e com naturalidade.
Ocorreu também a orientação acerca do método e sua aplicabilidade ao pai de EO, o qual a acompanhava na leitura em casa. Em algumas ocasiões selecionei vídeos com os sons das letras de modo a melhor auxiliar os responsáveis na rotina de leitura em casa.
Fiz também a ficha padrão janelinha, para auxiliar a estudante na atenção e foco com o estudado, conforme as orientações constantes no próprio material.
Atividades complementares relacionadas à leitura foram ofertadas à aluna, de modo a fortalecer sua autoestima: leitura literária, rimas, aliterações, atividades artísticas, bem como exercícios psicomotores.
Como exemplo de uma atividade complementar apresenta-se a leitura em tabela de dupla entrada.
Material utilizado para o trabalho: tabela de dupla entrada, dado com figura geométrica, dado convencional. Desenvolvimento: a criança lança os dois dados, localiza a palavra na tabela de dupla entrada e realiza a leitura da palavra. Observações importantes: as palavras devem ser dos blocos de letras já trabalhados; cada palavra lida deve ser comemorada; auxiliar a criança no encontro das palavras; ao final da atividade escrever uma frase positiva no caderno da criança como elemento reforçador de sua capacidade de aprender.
Para a realização desta atividade a estudante colocou em jogo algumas habilidades já consolidadas: relação parte e todo, localização espacial, compreensão de regras e leitura de palavras com fonemas já estudados.
Considerações
Para além da decodificação de símbolos, processo importante na aquisição da fluência leitora, aprender a ler traz consigo a ampliação das possibilidades de uma vida autônoma, como bem disse o pai de EO em nosso primeiro diálogo.
Desta forma, como resultado da aplicação do método tem-se que EO está lendo palavras com sílabas simples formadas pelas letras: a, m, l, o, f s, i, n, b, u, v, p, z, c, t, r, g, importante destacar que as sílabas complexas al, am, as, já compõe o conjunto dos sons já automatizados por EO. Destaco também que EO realiza leitura de pequenos textos com as palavras de seu repertório. Por fim registra-se a satisfação de todos os envolvidos nesta experiência exitosa: profissionais da educação, profissionais da área de saúde, família e de modo muito singular nossa amada EO.
Márcia Cristina Machado Pasuch
Escola Estadual Dom Bosco
Referência
STREIT, Uta. Aprendendo a ler: segundo o método IntraAct: livro do professor. Belo Horizonte, MG, EducaEthos Escola de Formação Humana, 2022.